Distâncias a partir de casa (série fotográfica impressa em risografia, 297 mm x 420 mm, 2020_21)
Comissariado para a exposição viajante "Valise en Carton" com curadoria de Inês Moreira e Parábola Crítica.
Em novembro de 2020 o Governo português decreta a suspensão da liberdade individual de deslocação, em horários determinados e salvo situações inadiáveis, como uma das medidas restritivas de contenção à pandemia da COVID-19 nos Concelhos de elevado risco de contaminação. Distâncias a partir de casa materializa-se em uma série fotográfica produzida por meio de caminhadas solitárias pelas ruas de Lisboa nos períodos de recolhimento obrigatório, quando está ativa a proibição de circulação em espaços e vias públicas.

A interdição da permanência no espaço público indica em que medida a gestão de uma epidemia relaciona-se ao controle das condições urbanas e traz à torna discussões que são também de gênese espacial. O vírus se desenvolve e reproduz como consequência de modos de intervenção e ocupação do território, assim como segue rotas de deslocamento humano pelo planeta. A cidade é o caldo, condição de coexistência de organismos de naturezas distintas, o que pode alimentar o ressurgimento de discursos anti-urbanos em que o espaço público figura como perigoso ou ameaçador, enquanto o doméstico como local de refúgio e segurança. No rol das doenças espaciais e urbanas, a Covid-19 provocou o surgimento de novas etiquetas de contato e comportamento social, coreografias coletivas, tipologias arquitetônicas e espacialidades de emergência, que se refletem em uma vivência modificada e excepcional da cidade. Quando parte expressiva das interações, fluxos e cadências regulares estão ausentes, restam no espaço os rastros de presenças anteriores e usos interrompidos; emergem sinais de abandono, crise ou colapso; saltam à vista existências talvez obscurecidas pela profusão de camadas antes ativas. A cidade dá-se a ver mais nitidamente como um ecossistema de contágio entre seres vivos e não-vivos.

As caminhadas, iniciadas sempre no mesmo ponto, esticam vetores de deslocamento à escala do corpo, suas potências e limitações, e buscam experimentar as novas distâncias de contato que se vão instaurando entre este e os demais seres e lugares urbanos que surgem pelo caminho. Além do fenômeno de esvaziamento, encontro outras imagens simbólicas que apontam para possíveis leituras sobre os efeitos colaterais destes tempos na cidade. Motivadas pela crença coletiva no ultra invisível e ultra transmissível, camadas de proteção e distanciamento interpõem-se entre os corpos e o ambiente circundante. Anestesia sensorial que se traduz na supressão preventiva da dimensão tátil e na repulsa à presença do outro desconhecido. Este é visto como possível fonte de contágio mesmo quando sua presença não passa de um vestígio do toque humano sobre as superfícies. Como consequência de um vírus, que desafia os paradigmas da visibilidade, as situações e cenários da vida cotidiana convertem-se ainda mais em imagens reproduzidas e mediadas pelos ecrãs digitais. Revisito a cidade onde vivo como quem regressa para verificar os danos e as relíquias que restam após um evento inesperado, ou para ver como as coisas se comportam quando não há "ninguém" para testemunhar.

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