A FOTOGRAFIA ENTRE OUTROS ESCOMBROS
apresentação em conferência (Dezembro 2023)
Comunicação apresentada na Conferência Internacional de Estudos de Fotografia - Fotografia e Lugar: Percursos, Cartografias e Derivas realizada no Colégio dos Jesuítas, na Universidade da Madeira, Funchal. O livro de resumos da conferência pode ser lido neste link.
Resumo: Quando uma edificação é demolida, a sua estrutura, unitária e planeada, é violentamente desintegrada em incontáveis fragmentos. Heterogéneos e desordenados, estes fragmentos borram os limites entre o que era privado – o interior duma casa, marcado pelos vestígios quotidianos dos seus moradores– e o que é público – o terreno onde estava implantada, cercado pelos caminhos habituais de indivíduos anónimos. Em 2019, ao caminhar pela zona onde transcorria a demolição das duas últimas torres do Bairro do Aleixo, no Porto, encontrei uma fotografia familiar em meio à montanha de entulhos. O Aleixo foi um conjunto de habitação pública construído no início da década de 1970, numa zona industrial da cidade, para abrigar famílias desalojadas da Ribeira em razão duma operação de renovação urbana idealizada por um célebre arquiteto. As cinco torres de treze andares representavam um gesto arquitetónico inovador na paisagem portuense de então. Ao longo do tempo, serviram de moradia para uma população numerosa e mutável que se apropriou desse modelo de habitação pouco comum na época. Entre 2011 e 2019, o Aleixo foi alvo de três operações de demolição, politicamente justificadas pela degradação estrutural e social do lugar. As duas primeiras foram implosões espetaculares e televisionadas, enquanto a última, que presenciei, foi um lento trabalho de desconstrução civil do edifício que durou meses. Uma mulher vestida de branco posa na varanda de um dos últimos andares da torre que estava a ser esventrada pela garra de aço quando encontrei a fotografia. No segundo plano, paira o esqueleto fálico da torre 4, implodida em direto na televisão aberta. A fotografia a preto e branco, bastante arruinada pelo tempo e pelas condições às que foi exposta, sugeria uma afinidade conceptual com os demais escombros que a cercavam. Na proposta de comunicação detenho-me sobre a fotografia encontrada objetivando desvelar os processos e tensões armazenadas nesse fragmento. Recorro às relações ontológicas entre fotografia e morte, e aos paralelismos entre fotografia e ruína, para analisar a imagem espectral desse sítio apagado. Busco desenvolver o que o encontro com ela pode indicar sobre a memória do bairro, a sua imagem pública, assim como o longo e violento processo de remoção dos moradores. Por fim, chego à noção de “imagem-escombro” como chave de leitura para esse vestígio quase desaparecido que afirma teimosamente a persistência de um lugar dissidente e complexo, pretensamente apagado do espaço público e suprimido da memória urbana pelas sensibilidades dominantes. [Flora Paim]
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